10 de out de 20206 min

Ana Jarrouge - Do quintal de casa à cadeira de presidente

Atualizado: 14 de out de 2020

Desde que me conheço “por gente” via caminhões cercando minha casa e meu quintal.

Quando nasci, meu pai já administrava a empresa e nossa casa ficava exatamente no meio do pátio. Tudo era muito simples, mas sempre propiciava finais de semana de grande diversão, eu tinha um parquinho como nenhum outro.

Eu e minhas irmãs vivíamos sujas devido ao fato do pátio ser de pedregulho e ainda em razão do tipo de carga que a empresa transportava (para a indústria pneumática), adorávamos nos esconder dentro daquelas pilhas enormes de pneus que ficavam no pequeno armazém, além de empoleirar nas carrocerias estacionadas lado a lado, que na época eram todas abertas, e, também, brincar no equipamento que ficava na borracharia. A gente fazia uma bagunça.

Todo final de ano minha família fazia churrasco de confraternização para os funcionários. Meu pai, meu avô e meus tios cuidavam das carnes, mulheres montavam e serviam os lanches e nós, a criançada (eu, minhas irmãs e primos) adorávamos servir os refrigerantes. Tudo era feito em casa, de maneira muito simples, mas com muito propósito e carinho da família Ferreira.

A entrega dos veículos novos era outra diversão, muito comemorada e rendia muitas fotos. Ir à escola com minhas irmãs e primos de Kombi com o querido Dirceu, motorista que trabalha lá até hoje, era uma aventura.

Eram bons tempos. Quantas lembranças boas!

Cresci dentro da empresa e aprendi a observar, a respeitar e entender sobre os caminhões, assim como sobre a sua importância para a economia do nosso país. Impossível ignorá-los nas ruas, nas estradas, em qualquer lugar que os vejo. Está no sangue.

Trabalhar na empresa foi uma questão de tempo. Por volta dos meus 16 anos, durante um almoço, meu pai comunicou a família que eu começaria no dia seguinte. E, foi assim que também comecei minha trajetória no TRC.

Iniciei como auxiliar de escritório, e jamais esquecerei do dia em que peguei, no balcão do departamento pessoal, meu primeiro contracheque, impresso com o adiantamento junto em espécie, cerca de R$76,00, se não em engano. Foi incrível a sensação de liberdade e autonomia.

Trabalhei em diversas áreas e funções. Aprendi muito e, especialmente, as tarefas simples, do dia a dia de uma transportadora, como emissão de documentos, rotinas, processos, procedimentos, nos departamentos administrativos (atendia telefone, carimbava cheques, separava material de escritório, organizava arquivos e etc.) e até nos operacionais como almoxarifado, manutenção de veículos, armazém, expedição, rastreamento, emissão de conhecimento de transporte, atendimento de motoristas e etc.

Enquanto isso, me formei em Direito e, na sequência, comecei a lidar com os departamentos pessoal, recursos humanos e jurídico para me preparar para assumir os processos judiciais.

Com a bagagem adquirida, e muita vontade de ajudar para que as coisas melhorassem, sempre procurei contribuir para aprimorar as atividades nos departamentos em que atuei, eliminando retrabalhado, implantando controles e definindo novos procedimentos.

Eu não tinha noção na época e, para falar a verdade, era até bastante insegura, mas eu era uma líder desde muito nova porque sempre estive à frente das mudanças e me colocava nesta condição de assumir riscos. É claro que, por muitas vezes, acabei tomando decisões impulsivas e precipitadas, por pura inexperiência e imaturidade.

Fato é que acabei assumindo a gestão administrativa, de recursos humanos e do jurídico da empresa. Atuei nestas áreas por vários anos de forma estratégica e, também, colocando muito a mão na massa.

Trabalhar em uma empresa familiar é desafiador, exige equilíbrio emocional e grande dedicação. E foi com esta dedicação do primeiro dia que fiquei durante 18 anos lá.

Foi um tempo maravilhoso, um amor imensurável que revivo cada vez que encontro aquele caminhão azul com listra amarela pelas estradas.

Por outro lado, o desgaste emocional também era intenso. Eu me sentia com uma responsabilidade enorme, tinha sempre que chegar primeiro e sair por último, e isso, muitas vezes, causava problemas em casa. Não foram poucas as vezes em que sai chorando da empresa, entrei no carro e chorei muito mais, sozinha. Mas esses momentos me fortaleceram.

A cada obstáculo, a cada dúvida, a cada tropeço, a cada bronca eu crescia, como pessoa e como profissional.

A cada obstáculo, a cada dúvida, a cada tropeço, a cada bronca eu crescia, como pessoa e como profissional. Para mim, o mais importante sempre foi respeitar as pessoas, aprender o que cada uma delas tinha para me ensinar com muita humildade, criar um ambiente amistoso e deixar um legado. Aprendi muito, com muita gente, as quais nem me atrevo citar os nomes para não cometer qualquer tipo de injustiça. Mas o único que não merece, jamais, ser esquecido neste contexto é meu pai, obviamente, meu exemplo. Uma pessoa extremamente focada no trabalho, um workaholic nato, “raiz” eu diria. Com ele aprendi que dedicação e amor ao negócio fazem toda a diferença; e o valor e a importância do “associativismo”, da união do setor por meio das entidades de classe. Claro que temos pontos de vista diferentes em algumas questões, e tivemos algumas divergências durante minha trajetória na empresa, mas nada que apague o aprendizado adquirido, pelo qual sou eternamente grata.

Na época, andar no pátio e conversar com os motoristas e demais colaboradores sempre me fez bem e procurei estar perto deles sempre que podia, minha sala sempre estava aberta para atender e ouvir a todos. Não foram poucas as vezes em que me emocionei ao realizar alguns projetos na área de RH.

Eu simplesmente amo trabalhar com gestão de pessoas, descobrir talentos, dar oportunidades, reconhecer publicamente um bom desempenho e dar um abraço apertado, seja em quem for!

Entretanto, no auge dos meus 37 anos, eu queria mais. E, ali na empresa, não havia para onde crescer porque meu pai é muito novo, muito envolvido no dia a dia e não havia espaço para falarmos em sucessão naquele momento. Esta foi a razão pela qual tomei a decisão de seguir meu próprio caminho, sair do dia a dia da empresa e trabalhar mais focada na minha profissão como advogada, mantendo a ligação jurídica com a AJOFER por meio de um contrato de prestação de serviços.

Acredito muito nas mulheres e na capacidade peculiar que elas possuem de “cuidar”, de si, dos outros, da família, da empresa, da sociedade, do nosso planeta, e é isso que precisamos.

Confesso que foi muito doloroso. Só eu sei o quanto doeu, mas não me arrependo. Esta decisão me fez muito bem, eu precisava daquele distanciamento para crescer profissionalmente, para entender mais do mercado, de negócios e conhecer outras visões de gestão.

Neste meio tempo, enquanto ainda estava na empresa, me envolvi com a COMJOVEM – Comissão de Jovens Empresários e Executivos do TRC, por iniciativa do meu pai que frequentava as entidades de classe há anos. Comecei pela comissão do SETCESP em 2004 e depois continuei participando da Comissão à nível nacional, na qual acabei ficando até final de 2019, quando me desliguei como Coordenadora Nacional após 6 anos de gestão pela NTC&Logística.

Foi uma baita experiência. Conheci inúmeras pessoas, empresários, líderes, segmentos de negócios e empresas. Foi simplesmente incrível e uma oportunidade que me levou a outro patamar de aprendizado.

Por fim, inesperadamente, ao finalizar minha trajetória junto à COMJOVEM Nacional, soube do processo seletivo para Presidente Executiva no SETCESP.

Resolvi me inscrever e fui chamada para uma entrevista. A primeira da minha vida. Uau, que frio da barriga, não dormi na noite anterior! Até que, alguns dias depois, recebi o telefonema dizendo que havia sido aprovada. Foi simplesmente sensacional, desliguei o telefone e comecei e gritar, pular... nem acreditava.

Era a realização de um sonho: me tornar uma verdadeira Executiva com “E maiúsculo”.

Chorei e comemorei muito porque para chegar até aqui eu trilhei um caminho desafiador. Sempre estudei e me dediquei para isso. E, se tornou real.

Ser mulher, esposa, profissional e mãe, não é fácil. Nossa carga é pesada, nossa jornada se torna dupla, às vezes tripla, mas tudo valeu a pena.

Hoje me sinto feliz, realizada e reconhecida. Contribuir para que outras mulheres também se sintam felizes, realizadas, reconhecidas e valorizadas é uma missão para mim, porque isso me faz bem.

Espero que este nosso movimento ecoe em todo setor de transporte rodoviário de cargas, para que as mulheres sejam ouvidas e se tornem partícipes no processo de transformação do qual nossa sociedade está passando, deixando o mundo mais leve, mais inclusivo, mais respeitoso e mais humano.

Acredito muito nas mulheres e na capacidade peculiar que elas possuem de “cuidar”, de si, dos outros, da família, da empresa, da sociedade, do nosso planeta, e é isso que precisamos.

Sejam bem-vindas ao nosso movimento!

* por Ana Jarrouge


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